Marco Aurélio entre Mário Covas e Ulysses Guimarães
Nesse momento de intenso ativismo político, não há como não lembrar o Icónico Piantella, lugar onde muitas vezes, o que ia acontecer no Congresso Nacional, era decidido. Há mais de 22 anos, exatamente em abril de 2000, o repórter Chico Neto entrevistava o sócio administrador do Piantella Marco Aurélio Costa.
Ah quem diga que um bom cozinheiro conquista as pessoas pela boca. No caso do Marco Aurélio, essa conquista vai bem mais além: ele conquista pela generosidade, pelo bom caráter e por essa irradiante simpatia italo-lusitana-mineira!
Marco Aurélio é sinônimo de unanimidade. As pessoas que trabalharam com ele o têm como um grande amigo. Patrão, apenas no corre-corre das tarde e noites movimentadas do Piantella.
Com vocês, o Piantella e Marcou Aurélio Costa!
UM PAÍS CHAMADO PIANTELLA
O mais famoso restaurante de Brasília, palco de muitas resoluções importantes que determinam profundas mudanças no País, comemora neste ano suas bodas de prata.
Recentemente, foi até citado em discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A receita do sucesso, difícil ser praticada por muitos mortais comuns, se fundamenta num princípio que tem tudo a ver com a filosofia do filme “Como Água para Chocolate”, do mexicano Trueba: amor ao que se vai levar à mesa. Bem sabe o proprietário da casa, Marco Aurélio Costa, que somos o que comemos.
Muitas das grandes decisões de Brasília são tomadas ao redor de uma boa mesa. Novidade? Sim, se consideramos que, no caso da mesa do restaurante Piantella – o preferido, na Corte, tanto pelos mais nobres colunáveis quanto por aqueles que conjugam um bom padrão de vida com o privilégio do anonimato –, nada acaba em pizza, no sentido literal do termo. Foi assim com o processo de redemocratização, a candidatura de Tancredo Neves, as Diretas já, a elaboração da constituinte… E um tanto mais do qual nem todo mortal comum tem conhecimento.
Segredos da boa mesa, não duvide. Ou, mais ainda, de um ambiente sobre o qual dizer que é “especial” seria pouco, já que por ali as melhores impressões vão além de detalhes como o bom gosto do salão todo iluminado em âmbar, o requinte do ponto “Cozinhar é poesia” – resume ele, que, verdadeiramente, tem aí a pedra fundamental da Piantella. Marco Aurélio é dessas personagens marcantes como a protagonista de “Como Água Para Chocolate”, filme que nos traz um belo tratado sobre o amor devido à arte de lidar com o que se come, e que reforça a sabedoria milenar de que somos o que comemos. Foi assim que ele cresceu, observando a dedicação da mãe na elaboração de cada pequeno pão que entrava em sua casa – e, provavelmente, predestinado a passar para a frente este aprendizado vital que é o saber comer.
Esta vivência foi que ele levou ao Piantella, desde o início. E foi com ela a cozinha impecável e a adega aristocraticamente correta. A história do Piantella, que começou como Tarantella e teve de mudar de nome em razão da existência de um homônimo do Rio – cá para nós, ficou bem mais original assim –, tem tudo a ver com o perfil de uma pessoa muito singular chamada Marco Aurélio Costa, empresário mineiro de descendência luso-italiana que já teve o privilégio de morar em Vitória e hoje ostenta um dos mais simpáticos corações candangos, que conseguiu assegurar à casa o status do mais badalado restaurante brasiliense – paixão de gente famosa como Ulysses Guimarães, que foi cliente assíduo e grande amigo de Marco Aurélio; de Luís Eduardo Magalhães, igualmente arrebatado pelo bom astral de casa e, também como Ulysses e tantos outros memoráveis cidadãos, já ausente deste chamado “mundo dos vivos”.
Tanto o pai da constituinte quanto o jovem presidente da Câmara dos Deputados figuram, na aguçada memória de Marco Aurélio, como as figuras mais respeitáveis que já passaram por lá. Talvez por essa característica rara tenham cumprido missão que para todo mundo pareceu tão rápida, haja vista a falta que fazem personalidades deste quilate no mundão nosso de cada dia. E fechemos parêntese: afinal, almas preciosas como a desses dois fazem parte da malha astral que compõe a originalidade do Piantella.
CONSTITUINTES, DIRETAS JÁ, CANDIDATURA DE TANCREDO NEVES: TUDO ISSO É UM TANTO MAIS FOI DECIDIDO E DISCUTIDO NOS MÍNIMOS DETALHES NÃO NOS ESCRITÓRIOS ELEITORAIS, MAS NO PIANTELLA, EXATAMENTE NESTA MESA ONDE TINHA CADEIRA CATIVA, O “VELHO” ULYSSES GUIMARÃES.
O que distinguiria, enfim, este disputado point no panorama brasiliense onde não faltam invejáveis casas de degustação? Com certeza, tudo começa com a simplicidade e o rigor que Marco Aurélio devota à sua arte maior – e que, com um vivo prazer, gosta de passar para a frente e ver dar frutos. Não é à toa que, nesse quase um quarto de século em que Piantella brilha no céu de Brasília – onde tantas estrelas têm duração efêmera –, o funcionário com menos tempo de casa tem por volta de oito anos. Vê-los crescer profissionalmente é um verdadeiro regalo para o dono da casa – que, aliás já acompanhou a ascensão de vários, e alguns chegou a mandar para especializações na Europa, como os sommeliers Chico e Emerson. Para ele, “garçom é um belo emprego”. E assim, com esse devido respeito que eles merecem, são tratados os seus.
É isso aí! Marco Aurélio, que sempre gostou de cozinhar e não consegue dissociar amor desse processo, pode contabilizar, hoje, aproximadamente 500 profissionais formados pela escola Piantella. “Você conhece as pessoas que têm aptidão” – afirma. Sem mais nem menos, pode-se dizer que este é o genuíno faro do coração. Porque, para gente como ele, nem bem o zelo que se deve desprender à hora de preparar os alimentos é suficiente: há que se ter amor a partir da hora em que se escolhe o que vai à mesa.
“Quando você vai ao Ceasa, ao frigorífico ou a qualquer outro lugar onde se adquirem os alimentos, tem de ir com amor” – ensina. “É um princípio fundamental. Quando você vai comprar as coisas, tem de estar muito bem, porque, a partir daquele momento, já estará criando um vínculo com o alimento, e a possibilidade do prato sair excelente é muito grande”. O toque pessoal – e intransferível – é sempre a melhor recompensa para o cliente.
Antes de tudo filosófico, tal posicionamento é o responsável pelo sucesso de muita gente que virou sinônimo de boa degustação. Sem demagogia, o que Marco Aurélio transfere para seu funcionário, e que cai como um bom licor no gosto do cliente, é a lembrança de que se torna importante ter humildade diante do trabalho para fazê-lo com amor e, consequentemente, triunfar. O resultado, todo mundo conhece. “As pessoas passaram a gostar de comer bem e a apreciar uma boa bebida” – observa, lembrando, em tempo, que o consumidor brasileiro é um dos mais exigentes.
“Há quem aprecie a degustação e há aqueles que comem só para alimentar o organismo” – cita. “Lembra-se da expressão “comi como um cardeal”? Pois é… Tem a ver: os cardeais, sempre muito bem-tratados por todo mundo, eram aqueles que se dedicavam à degustação com toda calma, com tempo para apreciar uma boa mesa
e digerir as iguarias que lhes eram oferecidas. Sabiam apreciar como se deve”. No Piantella, qualquer cliente come como um cardeal.
Sem exagero, porque ostentação é palavra que não combina com o perfil da casa. Tudo ali reflete muito mais do que um restaurante de alta qualidade citado pela crônica nacional como o must panorama brasiliense, nem por isso Marco Aurélio deita-se na fama: ao contrário, mantém sua simplicidade mineira, cuida dos negócios com o mesmo amor devotado à família e faz dali, literalmente, uma extensão da sua casa.
Sabe que pode contar com a gente pelas mãos de quem tanto um talharim quanto um prato à base de ingredientes sofisticados vão chegar à mesa com o mesmo requinte. E é por essas características que mantém sua casa sempre in, com clientela cuja simples presença, para muita gente, significaria a ascensão decisiva no empreendimento. Só que para Marco Aurélio, independente de se tratar de uma Rainha Elizabeth ou de um cidadão comum que vai ao Piantella para comer bem, todo mundo é VIP. “Penso que o bom é comer bem sem ser explorado” – afirma. É ir e conferir.
São muitos os notórios que marcam a presença por ali. Mal comparando, o Piantella seria uma Confeitaria Colombo de Brasília. O ex-ministro da Economia, Delfim Netto, por exemplo, tem cadeira cativa lá todas as terças-feiras – mesmo dia escolhido pelo senador Miro Teixeira. O velho e bom Ulysses Guimarães, também, Fernando Collor de Mello e tantos outros, dentre gente da política e da high society… quem tem um bom gosto conhece e disputa lugar no Piantella. A cada um, a casa brinda com o mesmo carinho que distingue todos os seus comensais.
Marco Aurélio, se não sabe de imediato o gosto de cada um – pois é pessoa extremamente antenada e espiritualmente dotado de fina faixa de sintonia –, não demora a acertar. Há quem tenha dúvida: será que uma peça do menu que arrebentou o paladar de um cliente estará disponível da próxima vez, da mesma forma? “Sem dúvida” – afiança. Foi assim com diversas atrações do cardápio bem elaborado da casa – tanto que o famoso clube do pior, alusão ao aguardente de pêra com que Ulysses Guimarães se deleitava, após degustar um picadinho à moda e o sorvete de chocolate, nasceu ali.
Tancredo Neves gostava de Campari e, vez por outra, de um vinho rosé às refeições. Ilustres representantes da república das Alagoas adoravam o Petit Liquorelli, que Ulysses Guimarães chegou a considerar “bebida de moça”. Collor, mais jovial, apreciava o Calvado, bebidas com notas de conhaque. Apresentado que foi ao drinque, o velho Ulysses deu seu veredito na lata: “Isso é bebida de louco!”. Marco Aurélio explica: “É porque deixa a gente alegre”.
Ulysses Guimarães, aliás, até hoje é uma lembrança das mais gratas na cabeça de Marco Aurélio. “Tínhamos uma relação de pai e filho” – recorda, os olhos miúdos ousados brilhantes lá em algum lugar do passado mais presente do que nunca. “Era uma pessoa íntegra, cumpridora de seus acordos e que, ao mesmo tempo, quando tinha que bater, batia firme. Tinha paixão por luta de box”.
De Marco Aurélio, Luís Eduardo Magalhães também levou desta vida um carinho de amigo eterno. “Foi uma das pessoas maravilhosas que frequentou aqui” – lembra. A rigor, o Piantella pode ser visto como um país, no que este pode ter de mais revelador em seus bastidores. “Na época da ditadura, aqui só frequentava a oposição” – situa o empresário. “Quando veio a abertura, e depois a fase do diretas já, criou-se um clima para as pessoas frequentarem mais aqui”.
Ulysses Guimarães, conta, respeitava muito Luís Eduardo. “Três dias antes do impeachment de Collor, Ulysses reuniu aqui todos os líderes da câmara e do senado. Fez questão de Luís Eduardo ao lado dele. Luís Eduardo defendia Collor, mas durante toda reunião portou-se com a maior tranquilidade. Depois que ele saiu, desceram a lenha. Havia um profundo respeito por Ulysses, e o que acontece com Luís Eduardo é que era também uma pessoa sempre muito querida e respeitada em todos os setores da política”. Era, aponta, uma figura realmente muito especial.
Luís Eduardo Magalhães era a única pessoa que eu conheci que, após um voto em que a oposição perdia, chegava aqui e gozava as pessoas, mas fazendo uma gozação sadia, gostosa. Era um jovem que conjugava a política com algo que se chama fidelidade, dignidade e correção. Acordo que fizesse, cumpria – mesmo que fosse contra o presidente da república. Na época da CPI do Orçamento, o deputado Ricardo Fiúza, de Pernambuco, ia ser cassado. Luís Eduardo defendeu-o bravamente, e, à noite, esteve aqui. Eu disse: Luís, estou abrindo um Champanhe para comemorar sua dignidade e sua fidelidade para com seus pares. Se algum dia eu fosse político, gostaria de ser firme como você”.
Assim é o Piantella, lugar onde aliás, muita gente que hoje forma um feliz casal se conheceu, “Há aqueles cujos filhos já conhecem e frequentam a casa; e até mesmo os que chegam a trazer os netos” – orgulha-se Marco Aurélio. Melhor dizendo: orgulha-se, não, alegra-se. Orgulho é o tipo de característica que não tem nada a ver com gente como Marco Aurélio Costa, uma qualidade aplausível e, convenhamos, um tanto rara em seu meio.
Tanto dentro quanto fora do Piantella ele é o mesmo sujeito sensível e carinhoso que se dedica de todo coração à mulher Deliane e aos filhos Fabrício, Fabiana – estudante de Medicina em Cuba –, Flávia, Ana Carolina e Desirée, temporona cuja emocionante história de vida foi responsável pelo encontro de Marco Aurélio com a
filosofia e prática espírita. Mas esta, e tantas outras conversas, são páginas à parte do cativante livro que é “um país chamado Piantella”. Algo que, como acontece combons livros, mais do que uma leitura sadia, é uma morosa degustação.