Da parceria à cumplicidade

ROUPAS+PELO+CHÃO

 

Saí do banho e parei para olhar você, que vinha na minha direção, recolhendo, uma por uma, peças de nossas roupas caoticamente espalhadas pela casa. Retenho a cena na memória, cada detalhe. Você caminha em um recorte de luz que te ilumina por detrás no corredor. Observo seus movimentos sempre apressados. Seu caminhar é o de quem avança pela vida com pressa. Sempre fazendo duas, três, tantas coisas ao mesmo tempo. Indo e vindo. Você não é um felino. Desfoca seus alvos. Simplesmente atira, descarrega a munição, e festeja o que acertar. Faz jus ao apelido de ogro. Um ogro alegre e brincalhão. Desajeitado até. Quem diria que não? Impossível imaginar de quanto requinte você é capaz quando fica a menos de um metro de mim. Precisamente. A menos de um metro você muda.

Volto duas casinhas e penso na cena clichê de há pouco. Ensaios eróticos. Filme talvez: o cara chega, abraça a mulher, os dois se beijam com vontade, sentem desejo imediato e começam a tirar a roupa na sala. Um chavão batido, caso o cara não fosse você e o lugar não fosse a sala de estar da minha casa. Uma poltrona serve de base para um ensaio das mais diversas posições. Você tirou parte de minha roupa mais facilmente do que eu conseguiria fazer sozinha. Não me reconheço. Mas já me habituei a deixar o meu corpo responder aos seus gestos como ele quiser. Você empurra a mesa de centro. — O meu vaso chinês sobrevive. — Depois embola o tapete enquanto me vira e me desvira de um lado para outro. Lembro da porta que pode deixar passar algum som para o lado de fora. Convido você para continuar no quarto. Impossível parar de fazer o que estamos fazendo. Você me explora com tantas mãos e bocas que não consigo atinar quantos nervos tem o meu corpo, nem quantas partes há nele que te obedecem cegamente. Depois você me acalma, sorrindo dos efeitos que o seu feito provoca em mim. Vaidade merecida. Me recomponho, ainda ofegante, e tento mudar o

ritmo. Do allegro ao andante, rumo ao adagio. Somos musicais.  No quarto, peço pra você ficar quieto e deitado. Ajeito meus travesseiros e neles faço com que você se recoste. Ainda não abri a veneziana nem as cortinas. A luz é confortável. Não faz frio nem calor. Você me olha então, esperando para saber o que vou fazer. Subitamente me dou conta de que você é outra consciência. Não é como o barro que eu modelo sob minhas mãos. Não é tampouco como as tintas que aplico sobre o papel. Mas é — pressentimento — pura matéria prima que me convida à criação.

Não tenho pressa. Agora é a minha vez. Analiso seu corpo. — Maldita lucidez! — Estou ali e estou aqui também, neste futuro de dias depois, que é o agora desta escrita. Estou com você, e estou nestas palavras. Nas linhas de seu corpo desenho letras bonitas. Toco você, e decifro, no braille de suas formas, os substantivos e a substância que te conformam. Conjugo os verbos e fico atenta aos seus suspiros de meias palavras. Nessa gramática erótica que inventamos para nós dois, quase me perco em pensamentos. Mas você me resgata. Me faz voltar ao corpo que eu não tinha mais, abandonar alma e mente para viver a realidade da carne. Você me humanizou, mas nem desconfia. No seu jeito prático, não há lugar para literatura. Você habita o mundo real, onde só existem os corpos, a pressa, a agenda, os compromissos e os prazos. As mentes são secundárias, meros veículos do desejo. O que me importa é estar na sua intimidade e ter você na minha, alternando domínios até perceber que o tempo não havia parado de todo. Um abraço, e o que somos dá lugar ao que seremos dentro de uma hora no máximo.

O relógio insiste, mas não nos importamos. Sabemos que podemos compensar esse tempo roubado às nossas rotinas. Pouco a pouco, creio que estamos aprendendo a lidar com isso. Você, como sonso, e eu, como quem vive o que houver para viver, um dia de cada vez, olhando apenas para o momento presente que eternizo depois como palavra.

Volto ao instante. Você ali no corredor em meio àquela luz, inconsciente das minhas reflexões. Roupas recolhidas e arrumadas sobre a minha cama: cueca, bermuda, camisa. Meu abrigo e a minha roupa íntima que você manipulou carinhosamente. No chão, ao lado da cama, minhas sandálias, que parecem tão pequenas perto dos seus tênis.

Você pega as toalhas que usei e entra no banho. Enquanto me visto e me recomponho, penso que não somos um casal viável na ficção. Ninguém desconfiaria de que mantemos um caso, se é que podemos falar de um “caso”, dado o peso dessa palavra, tão datada e significativa no vocabulário conservador. Não serviríamos para enredo de nenhum romance. Não temos cara de casal. A gente só acontece na vida real, a portas fechadas. Não combinamos em nada, exceto no amor ao trabalho, no companheirismo, na devoção do tentar fazer certo, na disposição em manter sempre o bom humor, em não se levar muito a sério, porque já temos, em nossas vidas, a dose de seriedade que basta.

Estamos prontos, banhados e vestidos.

Atravessamos a porta e saímos à rua como aqueles amigos de sempre.

A hora avançou. Nos apressamos. O telefone toca. Você atende normalmente enquanto dirige. Um compromisso social tipo família & cia. Eu também converso com uma voz tão firme quanto a sua. Aceito o convite. Sim, vamos todos jantar, naturalmente. Trocamos um olhar que vai da parceria à cumplicidade. Digo pra você que eu vou, sim, usando uma calça justa sem nada por baixo. Você me olha  e sorri. Dia de semana como outro qualquer. Vida que segue. Atrasos justificados. O mundo se distraía, muito ocupado, enquanto a gente transava. Penso na minha casa e nas toalhas molhadas que ficaram por lá, na mesa de centro que continua de lado e no tapete embolado. Sorrio comigo mesma, mas só por dentro. Por fora, eu continuo séria e respeitável, assim como você.

                                                                        Por Beatriz Basto

 

 

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