Quem nunca suspirou ao saber de uma história de amor proibido? Bem, talvez você tenha até vivido uma dessas histórias. E quem sabe escreveu e recebeu cartas de amor, o que seria perfeitamente natural se você nasceu nos idos do século passado. Tais cartas, quando aparecem, podem ser alvo da curiosidade tanto histórica quanto meramente especulativa. Afinal, são retratos da intimidade alheia. Papel, envelope, selos e palavras. Costumavam ser belas as cartas de amor. Que tal então examinar mais de perto dois romances epistolares polêmicos, porém rigorosamente históricos?
Creio que você já ouviu falar de Abelardo e Heloísa. Unidos pela paixão e pela tragédia no século XII, eles protagonizaram um dos casos de amor mais célebres de que se tem notícia. Sua correspondência, há séculos, vem suscitando o interesse não só de historiadores e de literatos, mas ainda do público em geral. Uma edição dessas cartas, publicada em 1865, nos fornece um resumo da história de Abelardo, aliás, Pierre Abélard, nascido em 1079 no burgo Le Pallet, Bretanha, perto de Nantes. Seu pai, senhor do burgo, em que pese ter feito a guerra, cultivava o espírito e desejou que seus filhos recebessem uma cuidadosa educação. Abelardo, em uma carta autobiográfica, nos conta que preferiu as armas da dialética aos troféus da guerra. Dominando o latim, o grego e o hebraico, tornou-se filósofo, poeta e orador, talentos que o levaram a Paris onde, tornado célebre, atraiu alunos inclusive do estrangeiro.
Acontece que, entre os 37 e 38 anos, Abelardo conhece Heloísa, sobrinha do cônego Fulbert, que se fez sua aluna. Heloísa era muito jovem e ainda estava sob a tutela do tio, que desaprovou o envolvimento. Quando o relacionamento veio à tona, Fulbert ficou furioso. Abelardo tentou reparar a situação, casando-se com Heloísa em segredo, mas ela, por não querer que o casamento prejudicasse a reputação acadêmica de Abelardo, negou publicamente que eles fossem casados. Foi então que Fulbert se vingou de forma brutal: mandou que castrassem Abelardo enquanto ele dormia. Depois disso, Abelardo se retirou para um mosteiro e dedicou-se inteiramente à vida religiosa. Heloísa, por sua vez, também foi para um convento. Segundo o próprio Abelardo, Heloísa não era exatamente bonita, porém: “Ela não era a última em beleza, mas não se igualava a ninguém e tinha plena consciência disso. Tudo aquilo que pode seduzir os amantes se oferecia à minha imaginação.”
Apaixonada, Heloísa, em uma das cartas que escreve a Abelardo, demonstra ser capaz de um amor violento e ardente, e toma a Deus por testemunha: “Jamais, Deus o sabe, jamais busquei em você outra coisa além de você”. E, a propósito de seu papel na vida do amado, escreve: “Embora o nome de esposa pareça mais forte e mais santo, o de sua amante sempre foi mais doce ao meu coração; e mesmo, se você me permite dizê-lo, o de sua concubina, de sua mulher de prazer…” Abelardo, por sua vez, diz que o casamento santificara a união de ambos, especialmente com a retirada dela para o convento das religiosas, até onde ele fora “Um certo dia, visitando-a secretamente, e lá, na falta de outro lugar onde pudéssemos ser livres, foi no próprio refeitório que nos abandonamos aos desregramentos de nossa libertinagem.” Ele lamenta, porém, o episódio: “Você lembra, digo-lhe, daquilo que tivemos a impudência de fazer em um lugar tão respeitável e consagrado à Virgem? Não tivéssemos cometido outros pecados, e este, unicamente, seria digno da vingança mais estrondosa.” E chega a justificar o ferimento que sofreu: “Por certo, se não me engano grosseiramente, esta ferida tão salutar conta menos como castigo pelos meus erros do que a continuidade dos males que hoje suporto.” Como visto, uma tragédia e um amor ardente em pleno século XII.
A outra história, nem tão conhecida, não é menos interessante. É sobre Mariana de Alcoforado, que viveu de 1640 a 1723. Soror Mariana, aliás, porque era freira. No convento da Conceição da Beja, em Portugal, estando ela na varanda, quando contava 26 anos, viu o Cavaleiro de Chamily ― Noël Bouton de Chamilly ― e imediatamente se apaixonou por ele, então com 30 anos.
Nada saberíamos dessa paixão, porém, não fosse um pequeno livro intitulado “Lettres portugaises”, de autoria desconhecida, que surgiu na França em 1669 e causou tamanha comoção entre seus leitores que, em 1690, apareceu uma segunda edição. Nesta segunda edição, aparece o tradutor das cartas, bem como o destinatário delas. A autora, porém, permanecia misteriosa, pois é simplesmente chamada de Mariana, assim permanecendo até 1810. Por volta desse ano, e por puro acaso ― sempre o acaso ―, foi descoberta uma nota manuscrita na edição original, na qual se lia o nome de Mariana de Alcoforado. Apesar disso, a existência real da autora das “Lettres portugaises” só foi documentada em 1888, com a retrotradução das cartas por Morgado de Mateus. Segundo ele, as cinco cartas teriam sido escritas por Mariana de Alcoforado, freira portuguesa, ao oficial francês, o que parecia esclarecer o mistério da autoria — embora a questão permaneça, até hoje, objeto de controvérsias. Não obstante a polêmica que envolve o caso, o que se tem de indiscutível nessas cartas é o arrebatamento amoroso que elas retratam: “Estou resolvida a adorar-te toda a minha vida, e não ver mais pessoa alguma […] Acaso poderias contentar-te com outra paixão menos ardente que a minha?”. E ainda: “Consumiste-me com as tuas assíduas perseveranças, inflamaste-me com os teus transportes, encantaste-me com as tuas finezas, asseguraste-me com os teus juramentos, a minha inclinação violenta seduziu-me, e as consequências destes começos tão agradáveis e tão venturosos não são mais do que lágrimas, gemidos, e uma funesta morte, sem que possa achar-lhe algum remédio!”
Mariana nasceu de uma família ilustre. Ela morreu com 83 anos, dos quais mais de sessenta foram passados no claustro, onde ninguém dela tinha queixas, dizendo-a muito benigna para com todos. Ao que consta, ela não se arrependeu de ter amado: “Agradeço-te, contudo, do fundo de meu coração, o desespero que me causas, e detesto a tranquilidade que vivi antes de conhecer-te” — escreveu ela. Difícil não imaginar o percurso dessas cartas que, indo da remetente ao destinatário, chegaram a um tradutor, circularam traduzidas e depois, graças a uma pista encontrada por acaso, foram mais uma vez publicadas no que seria sua versão portuguesa.
Cartas, enfim. Nunca se sabe o que o acaso pode fazer delas. Essas relíquias do íntimo puderam atravessar séculos e chegar até nós. Por vezes, são o retrato da vulnerabilidade humana; outras, são o risco de uma vida ou de uma reputação. Abelardo, vítima de uma vingança cruel e desnecessária. Mariana? O que terá feito o Cavaleiro de Chamilly de suas ardentes palavras para que elas acabassem publicadas, anos depois, e em francês? Sessenta anos passados no convento, e ela morreu sem saber que seu amor até hoje nos encanta.
Se essas paixões tão sentidas se fizeram ou se desfizeram, pouco importa. Porque as cartas nelas inspiradas não deixaram de seguir o seu caminho. Palavras que cruzaram as fronteiras da linguagem, das nações e do tempo, alheias à sua autoria. Ah, essas histórias não pertencem mais a quem as viveu. Penso que não. Porque nos apropriamos delas, à revelia de qualquer discrição. Esse nosso voyeurismo, contudo, é como um tributo pago à eternidade. Nada sei, porém, de você. Se escreveu cartas ou não. Contudo, se o fez, talvez algum dia elas venham à tona, por obra e graça do destino e da imponderável magia do acaso.
Maristela Bleggi Tomasini